Estado de suspensão provisório

Giovana Valadares
2 min readAug 10, 2021

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e-mail n° 1

Minha querida, após meu aniversário de 47 anos resgatei dois gatos da rua e desde então não sou capaz de entender esse êxtase respiratório. O espreguiçar das patinhas me amolece, o tamanho das unhas, o vai e vem da pele almofadada. Sou a plateia desses olhos laranjas mesclados e o bigode finíssimo a compor tanta emoção, que reservei até hoje para essas pernas felinas esticadas. A minha emoção pura os habita, ou melhor, seus corpos frágeis habitam o meu corpo também ou ainda mais frágil, pois possui o registro posterior e bruto da perda.

E assim as duas criaturas vividas me levam a crer que aprendi a falar de amor ao mesmo tempo em que falo de morte. Mas agora, no limiar da imprudência, temo o dia em que só conseguirei falar de amor ao falar de morte.

Devo ir cuidar dos gatos, acredita que alguém tirou um pedaço da boca de um deles? Está com alguns dentes à mostra e estou tratando do ferimento. Tão bonzinho, meu deus. Um beijo!

e-mail n° 2

Acabo de levantar e volto atrás nessa coisa tão triste, filha. Doidice minha. A morte só demonstra que não há um final para o amor. Não é o amor em essência, certo? Não sei mais.

Veja, entre aquilo que pensas ao perceber que ama, por uns segundos avista o momento em que deixará de amar. Mas talvez esse momento não existe. Se você amou, nada que fizer irá recuperar quem você era. E isso por si só já é o amor. Ou um de seus grandes rastros permanentes.

Gostaria muito de saber o que pensa a respeito.

Fica bem e qualquer novidade pode me ligar viu.

e-mail n° 3

Boa noite filha, me enrolei um pouco hoje, estava organizando uns documentos esquecidos. Você tem razão, o que eu disse vale para outros sentimentos, porém, tenho a impressão que o amor é a origem de todos eles. O fluído crescente que pode nos levar até a dor mais terrível e humana. Também há a falta de amor, o que é uma lembrança possível e distante dele. Se essa falta chega a ser palpável, é porque fizemos do resquício um milagre. No sentido de se manter, de não virar nada, de tragá-lo pela garganta seca.

Um dos meus escritores prediletos, Rubem Alves, diz que a morte é companheira silenciosa que fala com voz branda. Assim como o amor. É preciso reconhecer a natureza estabelecida entre os dois. Achei ter tocado esse reflexo poroso, esse espelho sujo e bambo. De ter em mãos a certeza de que amei e seguirei amando até depois da minha própria ausência.

Mas foi um instante ínfimo, quase nulo. Me senti ridícula assim que olhei para o lado e os gatos estavam lambendo suas costas com enorme prazer. Qualquer amostra de afirmação me soa pretensioso demais. Não passamos de seres pretensiosos descobrindo que o amor não se deixa sucumbir pela partida, mas que de certa maneira também pode se tornar o próprio sucumbir.

Vê se vem me visitar amanhã, o Pedro e a Tapioca estão ansiosos para te conhecer. Abraços

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